A CONSTRUÇÃO
EM BRACARA AUGUSTA
O
processo construtivo no quotidiano de uma cidade: os agentes e os artesãos
Jorge Manuel
Pinto Ribeiro
Maria Manuela
Martins
Resumo: Os
construtores e artesãos de Bracara Augusta assumiram um papel importante na
economia da cidade. Formam um grupo de indivíduos complexo e diversificado,
frequentemente invisíveis nas fontes escritas, cuja atividade recuperamos
através da Arqueologia. A cidade conheceu, desde muito cedo, e ao longo da sua
história, um protagonismo crescente, caracterizado por importantes funções
administrativas e religiosas. Este crescimento político gradual foi acompanhado
de uma significativa e permanente actividade construtiva, cuja análise nos
transporta ao universo da economia, do mundo social do trabalho, da inovação e
das modas.
Neste
artigo, procuraremos identificar os vários ofícios que estão por detrás desse
dinamismo, frequentemente denunciados pelas estruturas e materiais que
produziram, apreciaram e/ou adquiriram.
A
construção em Bracara Augusta
1. Introdução
Bracara
Augusta foi ao longo da época romana e tardo antiga uma cidade dinâmica, praticamente
com obras constantes. O nosso propósito é de interrogar as fontes arqueológicas
no sentido de identificar os agentes e artesãos responsáveis pela sua
construção, chamando a atenção para a sua importância na economia e no quotidiano
da cidade. A construção deve ter envolvido um grande número de pessoas, provavelmente
organizadas em collegia, dedicadas à produção dos diversos materiais destinados
à execução ou manutenção dos edifícios.
Este
dinamismo construtivo mantém-se no Baixo Império, onde se destaca a construção
da muralha defensiva, mas igualmente remodelações importantes nos grandes
edifícios públicos e nas domus da cidade, facto que deveremos relacionar com a promoção
de Bracara Augusta a capital da nova província da Gallaecia.
2. O estatuto
do artesão na Antiguidade
Os
trabalhadores da Antiguidade, frequentemente desprezados pelos textos clássicos,
deixaram-nos alguns testemunhos, na primeira pessoa, que revelam o seu orgulho
pelo sucesso conquistado através do trabalho. Assim o faz Nonius Datus (MOREL,
2011, p. 202), librator de Saldae, que
relata detalhadamente, num cipo (LASSÈRE; GRIFFE, 1997), a sua proeza técnica
na correcção do traçado de um aqueduto no norte de África: “[...] quasi reliquendus
habebatur [...] ut lucidius meus
circa
duc(tum) hoc Saldense pareret [...]”
A
temática dos trabalhadores da Antiguidade, tradicionalmente pouco investigada,
tem beneficiado nos últimos anos de várias contribuições que chamam a atenção
para o papel que estes assumiam na sociedade. Sabemos que os agentes
construtivos organizavam-se frequentemente em collegia de artesãos,
associações profissionais plurifuncionais (TRAN, 2007, p. 597), identificadas
em vários pontos do Império. A este propósito, em Braga conhece-se uma inscrição
da época de Cláudio, dedicada a Caius Caetronius Miccio, pelos cidadãos romanos
que negociavam em Bracara Augusta (MARTINS et al, 2012, p. 46). Esta inscrição,
relacionada com a actividade comercial, é duplamente importante, porque para
além de informar sobre a dimensão da cidade como “mercado”, sugere ainda a existência
desses collegia.
Trata-se
assim de um grupo profissional onde figuram indivíduos com estatutos muito
variados, a nível social, jurídico e mesmo no próprio trabalho, alguns
imensamente ricos, outros muito pobres (TRAN, 2010, p. 195), que exerciam a sua
atividade em espaços específicos das cidades. Eram frequentemente discretos,
sendo alguns percecionados através da Epigrafia, de alguns textos literários e
sobretudo da Arqueologia, por via das suas realizações.
3. As
diferentes categorias de agentes construtivos
3.1 Os
arquitetos
Na
Grécia, o arquiteto não é visto como um criador de formas, mas sim como um técnico,
conforme o sugere a etimologia da palavra: architekton=mestre carpinteiro
(GROS, 1983, p. 450). Para Vitrúvio exerciam uma profissão de grande exigência,
embora com reduzido peso social, e com pouca retribuição final (TAYLOR, 2006,
p. 15), representando apenas um dos elementos do processo construtivo, pois o
seu nome muitas vezes nem figurava nos textos (GROS, 1983, p. 432). Deviam
assim ser capazes de elaborar a planta de um edifício e de dirigir as suas
respetivas obras (VOGLER, 2011, p. 192).
A
complexidade e o rigor evidenciado por alguns edifícios comprovam a sua presença
em Bracara Augusta. Seria o caso dos edifícios que integravam o forum da cidade,
denunciados por um conjunto de grandes bases monumentais encontradas nas proximidades
do mesmo, do teatro ou ainda do anfiteatro, entre outros.
A
avaliar pela correspondência de Plínio com Trajano (DURÁN FUENTES, 2004, p. 138),
o arquiteto era uma figura frequente nas províncias. Numa das suas cartas,
Plínio, na qualidade de governador da Bitínia, pede o envio de arquitetos ao
imperador, o qual responde que recorra aos arquitetos locais, uma vez que não há província que não os tenha.
3.2 Os
machinatores
São
os agentes responsáveis pelo desenho e pela construção das máquinas usadas para
o levantamento de pesos e deslocação de cargas. Estas tinham várias aplicações possíveis,
quer em obra, quer nos cais para movimentar mercadorias. As características próprias
de determinadas obras, assim como o peso de certos elementos exigiam a utilização
dessas máquinas, cujos modelos mais complexos permitiam o levantamento de pesos
de cerca de 11 toneladas, como é o caso do exemplar representado no túmulo dos Haterii
(BÉRENGER, 2006, p. 519).
Em
Braga, a atividade destes agentes é denunciada pelas marcas de preensão
documentadas no grande aparelho usado na construção, visíveis em vários
edifícios, como nos muros em opus quadratum do teatro.
3.3 Os
agrimensores/ gromatici
Arte
fundamental na construção e no urbanismo romano, a agrimensura foi praticada
desde muito cedo pelos egípcios, que mediam anualmente as propriedades cujos
limites tinham sido apagados pelas cheias do Nilo (MARCOTTE, 2005, p. 150). Era
sabedoria de técnicos altamente especializados que, no Baixo Império, recebem
por vezes o estatuto de clarissimus.
Esta
disciplina constitui um dos fundamentos do Império Romano, associada à delimitação
das propriedades rurais, daí encontrarmos centuriações tanto na Península Itálica
como no norte de África (GUILLAUMIN, 2005, p. 4). Os seus profissionais reuniam-se
em corporações,
dividindo-se em quatro grandes categorias: os mensores militares, os mensores
imperiais, os mensores dos governos locais e os mensores independentes (CHOUQUER;
FAVORY, 1993, p. 256).
O
traçado dos aquedutos detetados em Braga foi certamente realizado por agrimensores,
que frequentemente eram militares. A sua presença é igualmente deduzida através
da identificação dos mecanismos que estão associados à planificação da cidade, designadamente
a implantação do seu plano ortogonal, cujos eixos se prolongam no território,
definindo o cadastro rural (CARVALHO, 2008, p. 418). 3.4 Os redemptores,
structores e outros fabri.
Nesta
categoria, englobamos um conjunto de indivíduos, cuja atividade está diretamente
envolvida na construção da obra: os redemptores, os structores e todo um conjunto
de fabri.
Os
redemptores designam os
construtores, frequentemente adjudicatários de obras públicas, mas que também
assumem obras privadas. Quando necessário formam sociedades, publicani,
para concorrer às mesmas. A colaboração com os poderes públicos era
frequentemente um meio de enriquecimento e de aumento de prestígio social.
Frontino, na sua obra sobre os aquedutos de Roma, indica que os serviços das águas
atribuem alguns trabalhos a redemptores (SALIOU, 2012, p. 17). O túmulo de Quintus
Haterius Tychichus, situado na Península itálica, revela um desses
empreiteiros, que certamente prosperou com a sua atividade, participando na
construção de edifícios públicos sob os Flávios, nomeadamente vários arcos de
triunfo, o coliseu e um templo (BÉRENGER, 2006, p. 518).
Os
structores eram pedreiros associados
à construção em alvenaria e ao pequeno aparelho, podendo eventualmente erguer
muros em tijolo. Talhavam as pedras, levantavam os muros com argamassa e
realizavam o acabamento das juntas.
Por
vezes, assimilaram-se aos redemptores, surgindo como responsáveis das obras, situação
que se verifica no norte de África (TRAN, 2008, p. 329), onde a Epigrafia documenta indivíduos que se designam como
structores, não sendo explicitamente assinalados como adjudicantes das obras,
embora na verdade tivessem esse estatuto.
Tecnicamente
inferiores aos canteiros, a sua arte não deixa de exigir uma grande habilidade na
escolha do material, na sua colocação e no fabrico da melhor argamassa,
elemento chave para aumentar a resistência do aparelho e proporcionar a perpetuitas do conjunto (DESSALES, 2011,
p. 44).
O
entusiasmo construtivo presente em Bracara Augusta ao longo da sua história
exigiu certamente a colaboração de redemptores e de structores, auxiliados por trabalhadores
indiferenciados e aprendizes, alguns muito habilidosos, tendo em conta a
qualidade dos paramentos preservados e a importância da arquitetura de granito.
É
evidente o trabalho de indivíduos conhecedores da matéria-prima local, das suas
propriedades e da sua melhor aplicação, saber e experiência acumulados e herdados
de tradições mais antigas. Na observação dos muros denotam-se escolhas
conscientes, como a colocação específica dos elementos maiores nos embasamentos
ou nas zonas mais sensíveis dos paramentos, ou o uso de elementos de tamanho
médio nos alçados, de forma a garantir a melhor coesão com a argamassa.
3.5 Os
lapidarii
Os
canteiros trabalhavam a pedra de forma geométrica, diferentemente dos escultores,
que elaboravam os elementos decorativos. O trabalho do grande aparelho pressupõe
talhadores muito especializados. Exerciam uma profissão dura e por vezes perigosa.
Nas grandes obras da Idade Média, como as catedrais, estes artífices recebiam um
salário superior ao dos restantes artesãos e até mesmo um prémio quando as
tarefas envolviam subir em andaimes.
Como
referimos, a arquitetura de Bracara Augusta é fundamentalmente uma arquitetura
de granito, pelo que os trabalhadores da pedra devem ter assumido uma grande
importância. Fabricaram os silhares e os elementos em grande aparelho que conferiam
imponência e resistência aos grandes edifícios públicos.
Conhecem-se
dois canteiros que trabalhariam no território de Bracara Augusta: Reburrinus
Lapidarius, referenciado numa inscrição votiva encontrada no concelho de Vizela,
datada do século II ou III (REDENTOR, 2011, p. 283) e Marcus Pelcius, associado
a uma lápide funerária encontrada no concelho de Viana do Castelo, com
cronologia do século I ou II (REDENTOR, 2011, p. 284).
3.6 Os
tignarii e pristae
Os
carpinteiros de obra construíam os vigamentos dos telhados, mas também os sobrados
em madeira, os andaimes e as estruturas provisórias de suporte das abóbadas.
Alguns
eram muito especializados, sendo considerados por determinados autores como os
verdadeiros heróis anónimos da arquitetura romana (TAYLOR, 2006, p. 187).
Alguns pristae, por exemplo, eram exímios no desenho e na armação de
cimbres, tarefas que exigiam um conhecimento profundo da tolerância da madeira
e dos procedimentos de montagem mais adequados para a construção de arcos ou
estruturas abobadadas.
A
sua arte seria muito requisitada em Braga, dada a quantidade de telhados e de coberturas
em abóbada documentados, bem como devido às grandes necessidades em madeira da
construção pública e privada.
3.7 Os
scansores
Estes
artesãos revestiam os telhados com tegulae
e imbrices, o que parece ser norma
nas construções bracarenses. A diversidade dos materiais detetados em contexto de
escavação parece sugerir o trabalho de uma importante mão-de-obra,
possivelmente ligada à produção oleira em geral.
3.8 Os
sculptores
Trata-se
de um grupo profissional de grande responsabilidade derivada do custo da matéria-prima
com que trabalhavam, maior ainda quando se tratava de pedra importada.
Com
efeito, um simples erro de talhe podia levar à inutilização de todo o bloco
trabalhado (MAR, 2008, p. 183).
Foram
detetados em Braga cerca de 350 elementos arquitetónicos, que
representam,
naturalmente, apenas uma pequena amostra das obras realizadas.
Algumas
peças exibem um trabalho muito elaborado, revelando a participação de artesãos experientes.
Na verdade, a realização em granito de elementos pensados para um material mais
fácil de trabalhar comprova a existência de uma mão-deobra conhecedora dos
modelos clássicos, mas também suficientemente experiente e habilidosa para
aplicá-los ao granito.
3.9 Os
tesselarii
Os
mosaicistas aplicavam tesselas de natureza variada sobre um suporte fresco, criando
composições decorativas que ornamentavam os pavimentos. Esta tarefa, longa e
delicada, podia implicar a participação de equipas formadas por distintos
indivíduos:
·
o calcis
coctor,
que preparava a cal;
·
o
pavimentarius,
que preparava o suporte;
·
o pictor imaginarius, que propunha
o desenho;
·
o pictor
parietarius,
que o aplicava no solo ou parede;
·
o musearius, que colocava
as peças nas composições mais delicadas;
·
o tesselarius que se
encarregava das partes a priori mais simples.
Os
mosaicistas raramente assinavam as suas obras mas são identificáveis através das
suas produções. Bracara Augusta exibe mosaicos em vários locais, designadamente
nas habitações privadas e espaços termais. São composições de vários tipos,
revelando, em alguns casos, artistas bastante experientes, que estariam
presentes na cidade no Alto Império, mas igualmente nas épocas mais tardias, a
avaliar pelos mosaicos que ornamentam os pisos das construções dos séculos III,
IV e posteriores.
3.10 Os
pictores
Os
pintores, frequentemente itinerantes, veiculavam as modas da época, primeiramente
apreciadas em Roma e na Península Itálica. Tal como os mosaicistas, não tinham
por hábito assinar as suas obras. Em Pompeia, por exemplo, conhece-se apenas uma
exceção numa pintura do biclínio da domus de Octavius Quartio, situada no
quarteirão do anfiteatro (SAURON, 2011, p. 66), onde se pode ler Lucius pixit.
Esta arte era bastante exigente em mão-de-obra, quer para a elaboração dos
níveis preparatórios para a pintura a fresco sobre os muros, quer para a
preparação das próprias pinturas. No Baixo–Império, seria essencialmente
escrava (VOGLER, 2011, p. 193). No que diz respeito às retribuições, as fontes indicam que os indivíduos que
elaboravam as composições eram melhor pagos do que aqueles que as aplicavam nas
paredes.
Em
Braga sabemos da existência destes artesãos através dos vestígios das suas obras,
que funcionavam como uma pele que decorava e protegia as paredes de algumas domus
da cidade, bem como de edifícios públicos, como o teatro.
3.11 Os figuli
Os
oleiros fabricavam as cerâmicas, mas igualmente as telhas e tijolos tão
necessários na construção. Contrariamente aos artistas anteriores, alguns
destes trabalhadores são identificáveis por via da sua assinatura nas peças que
produziram, ou então pelos seus cognomes, informando sobre a sua atividade,
tais como uns indivíduos da gens Licinia que exibem os cognomina imbrex e
tegula (MOREL, 2011, p. 209).
A
grande quantidade de materiais cerâmicos exumados nas escavações é reveladora da
importância desta atividade, que deve ter constituído um dos polos de
desenvolvimento da cidade. Algumas marcas poderão estar associadas a
fabricantes ou a proprietários de oficinas. É o caso das marcas Camalus e
Saturninus, associadas à produção de tegulae, material fácil de fabricar mas
delicado de transportar e manipular, dado o seu peso e fragilidade. Publius
Domitius, Octavius, Bassus e Lucretius, cujas marcas foram identificadas em
lucernas (MORAIS, 2005, p. 366), ou ainda os indivíduos representados pelos
genitivos Piri e Sabini e pela abreviatura SIL (MORAIS, 2005, p. 86), podem
eventualmente ter fabricado materiais de construção. O seu local de trabalho
seria a própria cidade e as cercanias da mesma, conforme o comprovam os quatro
fornos descobertos até aos dias de hoje.
No entanto, parece admissível considerar que o
fabrico de tégulas e ímbrices, destinado às coberturas dos telhados, pudesse
ocorrer nos estaleiros das obras, tendo em conta o peso destes materiais e os
seus elevados custos de transporte.
3.12 Os
ferrarii e plumbarii
Os
artesãos que dominavam a arte do fogo tinham um papel importante na construção,
fabricando a componente metálica das ferramentas, assim como os vários elementos
de fixação. Pascale Chardron-Picault (2011, p. 156) descreve o trabalho de
equipas com dois ou três homens, em espaços reduzidos, trabalhando na penumbra,
de modo a controlar a fusão dos metais, em lojas viradas para a rua. Oficinas
maiores e mais exigentes, dependendo de grandes fornos, por exemplo, e bastante
mais poluentes, deveriam localizar-se preferencialmente nas periferias dos
centros urbanos.
A
presença destes artistas em Braga é revelada pela descoberta em vários locais
de cadinhos associados ao trabalho do ouro e do bronze. Estes elementos sugerem
a presença de oficinas nas proximidades do forum, em contextos datáveis da
primeira metade do século I, trabalhando e vivendo em espaços simples,
realizados muito provavelmente com materiais perecíveis (MARTINS et al, 2012,
p. 45).
No
entanto, é presumível que as oficinas metalúrgicas se situassem na periferia da
cidade, uma das quais poderá ter tido como proprietário Titus Satrius, cujo
nome se encontra identificado, juntamente com o de dois escravos (Agathopous e
Zethus), numa estela decorada com ferramentas que parecem estar relacionadas
com o trabalho do metal (MARTINS et al, 2012, p. 55).
Estes
artesãos colaborariam igualmente no programa decorativo da cidade, designadamente
na produção de estatuária, como o comprova uma pata de cavalo em bronze,
pertencente a uma monumental estátua equestre, descoberta na domus das Carvalheiras,
mas que originalmente deveria estar colocada no forum da cidade.
Os
plumbarii
trabalhavam o chumbo, fabricando nomeadamente os tubos que constituíam os
sifões dos aquedutos ou ainda aqueles que integravam a rede de abastecimento de
água das cidades. Esta atividade muito antiga, de grande exigência técnica,
encontra-se associada ao labor de artesãos altamente especializados. A produção
de fistulae aquariae, por vezes de grande diâmetro, bem como a sua colocação,
dado o peso e fragilidade dos elementos, são improváveis sem um domínio desse
material. De referir também que, na Antiguidade, não existiam as ferramentas
que temos hoje para aquecer e soldar o chumbo. Por outro lado, para além do
fabrico dos canos, cabiam a estes artesãos igualmente tarefas de manutenção da
rede. Com efeito, estes tubos eram submetidos a pressões de água muito
elevadas, podendo levar à sua explosão, pelo que era necessário proceder a
frequentes reforços da zona das soldas/ juntas ou mesmo à substituição das
peças (VOGLER, 2011, p. 195).
Os
plumbarii estão documentados em Braga desde muito cedo, conforme o comprova uma
fistula descoberta na zona arqueológica das Carvalheiras (Figura 3), associada
à adução de água, necessária ao funcionamento de um balneum, construído no
século II, no quadrante noroeste da anterior domus. A peça descoberta exibe uma
inscrição que nos remete para o nome do seu fabricante, ou talvez do
proprietário da oficina: Titus Flavius Graptus F(ecit). Existiriam assim
oficinas dedicadas ao trabalho do chumbo, provavelmente localizadas fora do
centro urbano, tendo em conta os espaços que exigiam para armazenar os
materiais. Mesmo se a história não reteve o nome de todos eles, se
considerarmos a quantidade de espaços termais descobertos em Bracara Augusta,
deviam ser muitos os artesãos e os aprendizes associados ao trabalho do chumbo que
laboravam na cidade.
3.13 Os
metallarii
O
termo metallarii designa tanto os trabalhadores das minas como aqueles que operavam
nas pedreiras. De qualquer modo, ambos executavam um trabalho árduo e perigoso.
Na pedreira eram realizadas várias tarefas, desde a extração dos blocos, o corte
da pedra, da responsabilidade dos serrarii, um primeiro desbaste da
mesma, ao seu
transporte.
A
análise dos granitos que integram os vários edifícios estudados em Bracara Augusta
permitiu a individualização de pelo menos cinco variantes desta matéria-prima,
o que implicaria a existência de várias pedreiras em atividade, algumas delas
em simultâneo, escolhidas de acordo com a variabilidade da sua cor e maior ou
menor adequação dos vários tipos de granito às obras. Associada à exploração
das pedreiras temos que considerar igualmente uma mão-de-obra importante, que
contemplaria certamente numerosos escravos.
3.14 Os
vitriarii
Uma
publicação recente de Pascal Vipard (2009) indica-nos que os fabricantes de
vidros para a construção encontram-se documentados no mundo romano desde o século
I. Trata-se de artistas notáveis, que produziam um material nobre, raro e caro,
demonstrando mais uma vez o gosto dos romanos pelo desafio técnico. A sua
utilização na construção está fortemente ligada à iluminação das salas dos
espaços termais, o que era garantido por janelas com caixilharia de vidro,
tendo estas sido aplicadas igualmente em alguns edifícios públicos e nas casas
mais luxuosas, embora com muito menor frequência.
Estes
artesãos estão documentados em Bracara Augusta desde as primeiras décadas de
vida da cidade, onde são atestados por diversas oficinas e pelos vidros de
janelas recolhidos em algumas escavações, nomeadamente nas termas do Alto da
Cividade e nas zonas arqueológicas das Carvalheiras e das Cavalariças. Estes
indivíduos trabalhariam em oficinas localizadas na periferia da malha urbana,
como na da Casa do Poço (séc. I/II), na zona do Fujacal, na rua de S. Geraldo
(estas duas com cronologia mais tardia, entre os séculos III-V, com Mário Cruz
a sugerir que poderiam pertencer a um bairro artesanal de produção de vidro,
com várias oficinas) ou ainda no antigo quarteirão dos CTT, onde foi identificada
uma oficina com dois fornos, que laborou entre os séculos IV e V (MARTINS et
al, 2012, p. 55, 60).
3.15 Os
Aquarii/ aquae libratores
Estes
especialistas eram engenheiros topógrafos, muitas vezes militares, que elaboravam
o encaminhamento da água desde as nascentes às cidades. São os artífices da hidráulica,
conhecedores da arte de construção dos aquedutos e das fórmulas de cálculo da
pendente da água nas condutas. Tal como indica Chantal Vogler (2011, p. 195)
“esses cálculos não eram fáceis de realizar, exigindo o recurso à trigonometria
e ao teorema de Pitágoras, além de que o zero e a vírgula ainda não tinham sido
inventados pelo que era impossível recorrer à álgebra”. Estudos recentes
(CHANSON, 2002, p. 43) demonstram que esses indivíduos possuíam conhecimentos
hidráulicos muito avançados e que eram capazes de implementar sistemas muito
sofisticados, comportando barragens, bacias de regulação e poços de limpeza e
arejamento, para além de diversos dispositivos que permitiam conduzir a água às
cidades e distribuí-la para diferentes fins.
Desconhecemos
os nomes dos engenheiros hidráulicos que trabalharam em Braga.
No
entanto os vários aquedutos que abasteceriam a cidade, documentados por
referências escritas bem como pela
Arqueologia (MARTINS; RIBEIRO, 2012, p. 16), que evidenciam técnicas distintas
e complexas (aquedutos subterrâneos, aquedutos subaéreos, tecnologia
de
sifões, bacias de decantação) são prova da sua presença e proeza técnica.
De
referir que os revestimentos internos destas construções, em opus signinum hidrófugo,
detetados, por exemplo, no aqueduto da colina do Alto da Cividade (MARTINS; RIBEIRO,
2012, p. 20), exigiam capacidades técnicas particulares, apenas realizáveis por
trabalhadores habilidosos e conhecedores da arte (CHARDRON-PICAULT, 2011, p.
159).
3.16 Outros
agentes
Para
além das profissões citadas haverá que considerar toda uma série de indivíduos cuja
atividade está de perto ligada ao setor da construção. Entram nessa categoria
os vários tipos de transportadores (carpentarii, lenuncularii, raedarii), os
madeireiros (tignarii), que D. Rodrigo
da Cunha (1634) refere um aqueduto que abasteceria a cidade romana, captando a
água de uma das nascentes do rio Ave. Jerónimo Contador de Argote (1732-34)
refere igualmente a existência de aquedutos que abasteciam a cidade romana.
Laboravam
nas florestas, mas também, com maior incidência no Baixo Império, uma série de
trabalhadores ligados a tarefas de demolição, recuperação e reutilização. Com
efeito, alguns dos sítios estudados revelam, à semelhança daquilo que é
proposto para outras cidades (CHARDRON-PICAULT, 2011, p. 158), evidências do
desenvolvimento da prática de reutilização de elementos em pedra,
designadamente arquitetónicos e decorativos, que deve ter levado à formação de
um grupo de indivíduos especializados nesse domínio.
3.17 A
população dos construtores. Origens e estatutos
Sabe-se
hoje que a atividade construtiva englobava cerca de 20% da mão-de-obra urbana e
que assumiu um papel marcante na economia do Império (DANIELSDWYER, 2000, p.
22). Em Braga, a população dedicada à atividade da construção seria maioritariamente
formada pela população indígena e pelos seus descendentes, com um papel de
destaque das elites, que constituiriam os principais encomendadores das obras.
Alguns, à semelhança daquilo que parece verificar-se no comércio, poderão ter enriquecido por essa atividade,
atingindo cargos políticos ou religiosos de alguma importância. A Epigrafia
bracarense revela uma forte componente indígena na formação do corpo cívico da
cidade, alguns deles promovidos à cidadania romana, originários da região de
Braga ou de outras cidades da Hispânia, que podem ter estado relacionados com
esta atividade económica. Os libertos, alguns públicos, formariam também parte do
grupo dos artesãos. Igualmente numerosos seriam os escravos, documentados pela Epigrafia,
que laborariam nas várias oficinas e obras, bem como nas pedreiras.
4. Elementos conclusivos
Os
trabalhos arqueológicos realizados em Braga nos últimos 40 anos evidenciam, desde
a fundação da cidade, a atividade de agentes construtivos e artesãos, alguns
dos quais com oficinas instaladas na área urbana ou na sua periferia, herdeiros
de tradições mais antigas, que ajudam a divulgar as modas construtivas e os
modelos arquitetónicos provenientes de Roma.
De
facto, a Arqueologia regista a presença na cidade, em todas as épocas, de uma
mão-de-obra qualificada e diversificada, com diferentes graus de
especialização, correspondendo naturalmente a desiguais condições de vida e de
trabalho. A construção representaria uma das atividades mais dinâmicas da
cidade, empregando uma grande parte da população, com picos nas épocas de
monumentalização da urbe, designadamente entre a época flávia e antonina,
quando são construídas várias termas públicas, o teatro e o anfiteatro, ou no
Baixo Império, quando é construída a muralha defensiva e são remodelados vários
edifícios públicos e privados. Estamos assim perante uma atividade que teria
uma repercussão importante na economia de Bracara Augusta.
Alguns
aspetos desta atividade seriam regulamentados pela administração, como a atribuição
das obras públicas, através de contratos estabelecidos com os redemptores, ou ainda
a produção de materiais de construção, como os tijolos ou os tubos de chumbo.
No entanto, grande parte dos trabalhos e especialidades necessárias ao processo
construtivo seriam desenvolvidos no âmbito de atividades privadas, cujos moldes
de funcionamento nos escapa por completo.
Construtores,
artistas e todo um conjunto de artesãos distintos formavam um grupo muito ativo
que contribuiu para o desenvolvimento de Bracara Augusta e animava o quotidiano
da cidade e do território, pois era dele que chegava grande parte das matérias-primas
necessárias para a construção. Quer a presença dos agentes ligados ao
processo
construtivo, quer as suas realizações descobertas pela Arqueologia comprovam o
poderio económico de Bracara Augusta e de alguns dos seus habitantes.
In: Romanitas –
Revista de Estudos Grecolatinos, n. 6, p. 73-87, 2015. ISSN: 2318-9304
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