Fernando
Pessoa
ASSOCIAÇÕES
SECRETAS
ASSOCIAÇÕES
SECRETAS
Estreou-se
a Assembleia Nacional, do ponto de vista legislativo, com a apresentação, por
um deputado, de um projecto de lei sobre "associações secretas". De
tal ordem é o projecto, tanto em natureza como em conteúdo, que não há que
felicitar o actual Parlamento por lhe ter sido dada essa estreia. Antes que
dizer-lhe Absit omen!, ou seja, em português, Longe vá o agouro!
Apresentou
o projecto o Sr. José Cabral, que, se não é dominicano, deveria sê-lo, de tal
modo o seu trabalho se integra, em natureza, como em conteúdo, nas melhores
tradições dos Inquisidores. O projecto, que todos terão lido nos jornais,
estabelece várias e fortes sanções (com excepção da pena de morte) para todos
quantos pertençam ao que o seu autor chama "associações secretas, sejam
quais forem os seus fins e organização".
Dada
a latitude desta definição, e considerando que por "associação" se
entende um agrupamento de homens, ligados por um fim comum, e que por
"secreto" se entende o que, pelo menos parcialmente, se não faz à
vista do público, ou, feito, se não torna inteiramente público, posso, desde
já, denunciar ao Sr. José Cabral uma associação secreta — o Conselho de
ministros. De resto, tudo quanto de sério ou de importante se faz em reunião
neste mundo, faz-se secretamente. Se não reúnem em público os Conselhos de
ministros, também não o fazem as direcções dos partidos políticos, as
tenebrosas figuras que orientam os clubes desportivos ou os sinistros
comunistas que tornam os conselhos de administração das companhias comerciais e
industriais.
Embora
uma interpretação desta ordem legitimamente se extraia do frasear pouco
nacionalista do sr. José Cabral, creio, tanto porque assim deve ser, como pelos
encómios com que o projecto foi afagado pela imprensa pseudo-cristã, que as
"associações secretas", que ele verdadeiramente visa, são aquelas que
envolvem o que se chama "iniciação", e portanto o segredo especial a
esta inerente.
Ora
no nosso país, caída há muito em dormência a Ordem Templária de Portugal,
desaparecida a Carbonária — formada para fins transitórios, que se realizaram
—, não existem, suponho, à parte uma outra possível loja martinista ou
semelhante, mais do que duas "associações secretas" dessa espécie.
Uma é a Maçonaria, a outra essa curiosa organização que, em um dos seus ramos,
usa o nome profano de Companhia de Jesus, exactamente como, na Maçonaria, a
Ordem de Heredom e Kilwinning usa o nome profano de Real Ordem da Escócia. Dos
chamados jesuítas não tratarei, e por três motivos dos quais calarei o
primeiro. Os outros dois são: que não creio, por mais razões do que uma, que
eles corram risco de, aprovado que fosse o projecto, lhes serem aplicadas as
suas sanções; e que não creio por uma razão só, que o Sr. José Cabral tenha
pretendido que tal aplicação se fizesse. Presumo pois que o projecto de lei do
urgente deputado se dirija, total ou principalmente, contra a Ordem Maçónica.
Como tal o examinarei.
Não
faço, creio, ofensa ao Sr. José Cabral em supor que, como a maioria dos
anti-maçons, o autor deste projecto é totalmente desconhecedor do assunto
Maçonaria. O que sabe dele é até, porventura, pior que nada, pois,
naturalmente, terá nutrido o seu anti-maçonismo da leitura da Imprensa chamada
católica, onde, até nas coisas mais elementares na matéria, erros se acumulam
sobre erros, e aos erros se junta, com a má-vontade, a mentira e a calúnia,
senhoras suas filhas. Não creio que o Sr. José Cabral conviva habitualmente com
os livros de Findel, Kiuss ou Gould, ou que passe as suas horas de ócio na
leitura atenta da Ars Quatuor Coronatorum ou das publicações da Grande Loja de
Iowa. Duvido, até, que o Sr. José Cabral tenha grande conhecimento da
literatura anti-maçónica — Barruel ou Robison, ou Eckert — tão admirável,
aliás, do ponto de vista humorístico. Nem terá tido porventura noção, sequer de
ouvido, do artigo célebre do Padre Hermann Grüber na Catholic Encyclopoedia ,
artigo citado com elogio em livros maçónicos, e em que o douto jesuíta por
pouco não defende a Maçonaria.
Ora
se o sr. José Cabral está nesse estado de trevas com respeito à natureza, fins
e organização da Ordem Maçónica, suponho que em igual condição estejam muitos
dos outros membros da Assembleia Nacional, com a diferença de que se não
propuseram legislar sobre matéria que ignoram. Sendo assim, nem o deputado
apresentante, nem os seus colegas de assembleia, estarão, talvez, em estado de
medir claramente as consequências nacionais, internas e sobretudo externas, que
adviriam da aprovação do projecto. Como conheço o assunto suficientemente para
saber de antemão, e com certeza, quais seriam essas consequências, vou fazer
patrioticamente presente da minha ciência ao Sr. José Cabral e à Assembleia
Legislativa de que é ornamento.
Começo
por uma referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever evitar. Não
sou maçon, nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante ou diferente. Não sou
porém anti-maçon, pois o que sei do assunto me leva a ter uma ideia absolutamente
favorável da Ordem Maçónica. A estas duas circunstâncias, que em certo modo me
habilitam a poder ser imparcial na matéria, acresce a de que, por virtude de
certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte oculta da Maçonaria —
parte que nada tem de político ou social —, fui necessariamente levado a
estudar também esse assunto, assunto muito belo, mas muito difícil, sobretudo
para quem o estuda de fora. Tendo eu, porém, certa preparação, cuja natureza me
não proponho indicar, pude ir, embora lentamente, compreendendo o que lia e
sabendo meditar o que compreendia. Posso hoje dizer, sem que use de excesso de
vaidade, que pouca gente haverá, fora da Maçonaria, aqui ou em qualquer outra
parte, que tanto tenha conseguido entranhar-se na alma daquela vida, e
portanto, e derivadamente, nos seus aspectos por assim dizer externos.
Se
falo de mim, e deste modo, é para que o Sr. José Cabral e os seus colegas
legisladores saibam perfeitamente quem lhes está falando, e que o que vão ler,
se quiserem, é escrito por quem sabe o que está escrevendo. Não que o que vou
dizer exija profundos conhecimentos maçónicos: é matéria puramente de
superfície, da vida externa da Ordem. Exige porém conhecimentos, e não
ignorâncias, fantasias ou mentiras.
Começo
a valer. Creio não errar ao presumir que o Sr. José Cabral supõe que a
Maçonaria é uma associação secreta. Não é. A Maçonaria é uma Ordem secreta, ou,
com plena propriedade, uma Ordem iniciática. O Sr. José Cabral não sabe,
provavelmente, em que consiste a diferença. Pois o mal é esse — não sabe. Nesse
ponto, se não sabe, terá que continuar a não saber. De mim, pelo menos, não
receberá a luz. Forneço-lhe, em todo o caso, uma espécie de meia-luz, qualquer
coisa como a "treva visível" de certo grande ritual. Vou insinuar-lhe
o que é essa diferença por o que em linguagem maçónica se chama "termos de
substituição",
A
Ordem Maçónica é secreta por uma razão indirecta e derivada a mesma razão por
que eram secretos os Mistérios antigos, incluindo os dos cristãos, que se
reuniam em segredo, para louvar a Deus, em o que hoje se chamariam Lojas ou
Capítulos, e que, para se distinguir dos profanos, tinham fórmulas de
reconhecimento — toques, ou palavras de passe, ou o que quer que fosse. Por
esse motivo os romanos lhes chamavam ateus, inimigos da sociedade e inimigos do
Império — precisamente os mesmos termos com que hoje os maçons são brindados
pelos sequazes da Igreja Romana, filha, talvez ilegítima, daquela maçonaria
remota.
Feito
assim o meu pequeno presente de meia-luz, entro directamente no que
verdadeiramente interessa — as consequências que adviriam, para o país, da
aprovação do projecto de lei do sr. José Cabral. Tratarei primeiro das
consequências internas.
A
primeira consequência seria esta — coisa nenhuma. Se o sr. José Cabral cuida
que ele, ou a Assembleia Nacional, ou o Governo, ou quem quer que seja, pode
extinguir o Grande Oriente Lusitano, fique desde já desenganado. As Ordens
Iniciáticas estão defendidas, ab origine symboli, por condições e forças muito
especiais que as tornam indestrutíveis de fora. Não me proponho explicar o que
sejam essas forças e condições: basta que indique a sua existência.
De
resto, têm os Srs. deputados a prova prática em o que tem sucedido noutros
países onde se tem pretendido suprimir as Obediências maçónicas. Ponho de parte
o caso da Rússia, porque não sei concretamente o que ali se passou: sei apenas
que os Sovietes, corno todo o comunismo, são violentamente anti-maçónicos e que
perseguiram a Maçonaria; e também sei que pouco teriam que perseguir pois na
Rússia quase não havia Maçonaria. Considerarei os casos da Itália, da Espanha e
da Alemanha.
Mussolini
procedeu contra a Maçonaria, isto é, contra o Grande Oriente de Itália mais ou
menos nos termos pagãos do projecto do Sr. José Cabral. Não sei se perseguiu
muita gente, nem me importa saber. O que sei, de ciência certa, é que o Grande
Oriente de Itália é um daqueles mortos que continuam de perfeita saúde.
Mantém-se, concentra-se, tem-se depurado, e lá está à espera; se tem em que
esperar é outro assunto. O camartelo do Duce pode destruir o edifício do
comunismo italiano; não tem força para abater colunas simbólicas, vazadas num
metal que procede da Alquimia.
Primo
de Rivera procedeu mais brandamente, conforme a sua índole fidalga, contra a
Maçonaria Espanhola. Também sei ao certo qual foi o resultado — o grande
desenvolvimento, numérico como político, da Maçonaria em Espanha. Não sei se
alguns fenómenos secundários, como, por exemplo, a queda da Monarquia, teriam
qualquer relação com esse facto.
Hitler,
depois de se ter apoiado nas três Grandes Lojas cristãs da Prússia, procedeu
segundo o seu admirável costume ariano de morder a mão que lhe dera de comer.
Deixou em paz as outras Grandes Lojas — as que o não tinham apoiado nem eram
cristãs e, por intermédio de um tal Goering, intimou aquelas três a
dissolverem-se. Elas disseram que sim — aos Goerings diz-se sempre que sim — e
continuaram a existir. Por coincidência, foi depois de se tomar essa medida que
começaram a surgir cisões e outras dificuldades adentro do partido nazi. A
história, como o Sr. José Cabral deve saber, tem muitas destas coincidências.
Como
tenho estado a apresentar razões e factos até certo ponto desanimadores para o
Sr. José Cabral, vou desde já animá-lo com a indicação de um resultado certo,
positivo, que adviria da aprovação do seu projecto. Resultaria dele — alegre-se
o dominicano! — um grande número de perseguições a oficiais do exército e da
armada e a funcionários públicos. Perderiam os seus lugares os que não
quisessem ter a indignidade de repudiar a sua Ordem. Resultaria, portanto, a
miséria para as suas famílias, onde é possível e isto é que é grave — que se
encontrassem pessoas devotas de Santa Teresinha do Menino Jesus, personagem que
ocupa, na actual mitologia portuguesa, um lugar um pouco acima de Deus.
Resolver-se-ia, é certo, no estilo inesperado do roulement que não rola, o
problema do desemprego para aqueles actuais desempregados, bem entendido, que
têm por Grão-Mestre Adjunto o Sr. Conselheiro João de Azevedo Coutinho.
Seriam
essas as consequências internas da aprovação do projecto: dois zeros — um para
o efeito anti-maçónico da lei, outro para a barriga de muita gente. Seriam
essas as consequências internas. Vou tratar agora das consequências externas,
isto é, das consequências que adviriam da aprovação do projecto para a vida e o
crédito de Portugal no estrangeiro. Esse aspecto da questão, esse resultado,
não só possível, mas até certo, creio bem que não ocorreu ao Sr. José Cabral.
Presto homenagem — e a sério — ao seu patriotismo, embora lamente que seja um
patriotismo tão analfabeto.
Existem
hoje em actividade, em todo o mundo, cerca de seis milhões de maçons, dos quais
cerca de quatro milhões nos Estados Unidos e cerca de um milhão sob as diversas
Obediências independentes britânicas. Assim, cinco sextos dos maçons hoje em
actividade são maçons de fala inglesa. O milhão restante, ou conta parecida,
acha-se repartido pelas várias Grandes Obediências dos outros países do mundo,
das quais a mais importante e influente é talvez o Grande Oriente de França.
As
Obediências maçónicas são potências autónomas e independentes, pois não há
governo central da Maçonaria, que é por isso menos "internacional"
que a Igreja Romana.
Há
Obediências maçónicas que poucas relações têm entre si; há até Obediências que
estão de relações suspensas ou cortadas. Dou dois exemplos. A Grande Loja de
Inglaterra cortou em 1877, por um motivo técnico, as relações, que ainda não
reatou, com o Grande Oriente de França. A mesma Grande Loja cortou, em 1933, as
relações com a Grande Loja das Filipinas, em virtude de divergências — cuja
natureza não sei mas presumo — quanto à maneira de desenvolver a Maçonaria na
China.
Assim
a Maçonaria necessariamente toma aspectos diferentes — políticos, sociais e até
rituais — de país para país, e até, adentro do mesmo país, de Obediência, para
Obediência, se houver mais que uma. Dou um exemplo. Há em França três
Obediências independentes — o Grande Oriente de França, a Grande Loja de
França. (prolongada capitularmente pelo Supremo Conselho do Grau 33) e a Grande
Loja Regular, Nacional e Independente para França e suas Colónias. O Grande
Oriente é acentuadamente radical e anti-religioso; a Grande Loja limita-se a
ser liberal e anticlerical; a Grande Loja Nacional não tem política nenhuma.
Dou outro exemplo. O Grande Oriente de França tem uma grande influência
política, mas, excepto através dessa, pouca influência social. A Grande Loja de
Inglaterra não se preocupa com política, mas a sua influência social é enorme.
Conquanto,
porém, a Maçonaria esteja assim materialmente dividida, pode considerar-se como
unida espiritualmente. O espírito dos rituais, e sobretudo o dos Graus
Simbólicos (nos quais, e sobretudo no Grau de Mestre, está já, para quem saiba
ver ou sentir, a Maçonaria inteira), é o mesmo em toda a parte, por muitas que
sejam as divergências verbais e rituais entre graus idênticos, trabalhados por
Obediências diferentes Em palavras mais perspícuas, mas necessariamente menos
claras: quem tiver as chaves herméticas, em qualquer forma de um ritual
encontrará, sob mais ou menos véus, as mesmas fechaduras.
Resulta
desta comunidade de espírito profundo, deste íntimo e secreto laço fraternal,
que ninguém quebrou nem pode quebrar, que uma Obediência, ainda que tenha poucas
ou nenhumas relações com outra, não vê todavia com indiferença o ser esta
atacada por profanos Os maçons da Grande Loja de Inglaterra não têm, como se
disse, relações com os do Grande Oriente de França. Quando, porém,
recentemente, surgiu em França, a propósito dos casos Stavisky e Prince, uma
campanha anti-maçónica, de origem aliás ultra-suspeita, a vaga simpatia, que
potencialmente se estava formando em Inglaterra pelos conservadores que
atacavam o Governo Francês, desapareceu imediatamente. O Times, conservador mas
acentuadamente maçónico, relatou as manifestações contra o Governo Francês com
uma antipatia que roçou pela deturpação de factos. E há muitos casos
semelhantes, como o de certo escritor maçónico inglês, que em seus livros
constantemente ataca o Grande Oriente de França, mudar completamente de atitude
ao responder a uma escritora inglesa anti-maçónica, que afinal dissera pouco
mais ou menos o mesmo que ele havia sempre dito.
Nisto
tudo, que serviu de exemplo, trata-se de coisas de pouca monta, simples
campanhas de jornal, e por certo de atitudes espontâneas e individuais da parte
dos maçons que as tomaram. Quando porém se trate de factos maçonicamente
graves, como seja a tentativa por um governo, de suprimir ou perseguir uma
Obediência maçónica, já a acção dos maçons não é tão individual e isolada, nem
se resume a uma maior ou menor antipatia jornalística. Provam-no diversas
complicações, de origem aparentemente desconhecida, que encontrou em países
estrangeiros o Governo de Primo de Rivera, e que encontraram, e ainda
encontram, os Governos da Itália e da Alemanha.
Esses,
porém, são países grandes e fortes, com recursos, de vária ordem, que em certo
modo podem contrabalançar aquelas oposições. Vem mais a propósito citar o caso
de um país que não é grande nem influente na política europeia em geral.
Refiro-me à Hungria e ao que se passou com o célebre empréstimo americano.
Aqui
há anos, pouco depois da guerra, o Governo Húngaro decretou a supressão da
Maçonaria no seu território. Pouco depois negociava um empréstimo nos Estados
Unidos. Estava o empréstimo praticamente feito quando veio da América a
indicação final de que ele não seria concedido se não se restabelecessem
"certas instituições legítimas". O Governo Húngaro percebeu e viu-se obrigado
a entrar em transacções com o Grão-Mestre; disse-lhe que autorizava a
reabertura das Lojas com a condição (que parece do Sr. José Cabral) de que
nelas pudessem assistir profanos. É escusado dizer que o Grão-Mestre recusou. O
Governo manteve portanto a "suspensão" das Lojas... — e o empréstimo
não se fez. Ora isto sucedeu com a Maçonaria Americana, que não faz
propriamente política nem mantém relações muito intensas com as Obediências
europeias, à excepção das britânicas. Tratava-se, porém, de uma grave injúria à
Maçonaria, e o resultado foi o que se vê.
Não
venha o Sr. José Cabral dizer-me que não precisamos de empréstimos do
estrangeiro. Nem só de empréstimos vive o país. Precisa, por exemplo, de
colónias, sobretudo das que ainda tem. E precisa de muitas outras coisas,
incluindo o não incorrer na hostilidade activa dos cinco e tal milhões de
maçons que, por apolíticos, ainda nos não têm hostilizado.
Creio
que disse o suficiente para que o sr. José Cabral e os outros Srs. deputados
compreendam perfeitamente qual pode e deve ser o alcance da aprovação deste
projecto na vida e no crédito de Portugal. Antes de acabar, porém, quero
dar-lhes uma pequena amostra da espécie de gente em cuja antipatia activa
incorreríamos.
Tomarei
para exemplo a Grande Loja Unida de Inglaterra, não só pela importância que
para nós têm as nossas relações com aquele país, mas também porque qualquer
acção dessa Grande Loja — a Loja-Mãe do Universo, com cerca de 450 000 maçons
em actividade — arrasta consigo todos os maçons de fala inglesa e todas as
Obediências dos países protestantes. Do resto da Maçonaria não é preciso falar.
São
maçons, sob a obediência da Grande Loja de Inglaterra, três filhos do Rei — o
Príncipe de Gales, Grão-Mestre Provincial de Surrey, o Duque de York,
Grão-Mestre Provincial de Middlesex, e o Duque de Kent, antigo Primeiro Grande
Vigilante. É maçon o genro do rei, Conde de Harwood, Grão-Mestre Provincial de
West Yorkshire. São maçons o tio do rei, duque de Connaught, Grão-Mestre da
Maçonaria Inglesa, e seu filho, o príncipe Artur de Connaught, Grão-Mestre
Provincial de Berkshire. São maçons, em sua maioria, os fidalgos ingleses,
sobretudo os de antiga linhagem. São maçons, em grande número, os prelados e
sacerdotes da Igreja de Inglaterra, o clero mais profundamente culto de todo o
mundo, a Igreja protestante que mais perto está, em dogma e ritual, da Igreja
de Roma. Não prossigo, porque já basta... Lembro todavia que as três grandes
jornais conservadores ingleses — o Times, o Sunday Times e o Daily Telegraph —
são ao mesmo tempo maçónicos...
Acabei..
Convém, porém, não acabar ainda. Provei neste artigo que o projecto de lei do
sr. José Cabral, além do produto da mais completa ignorância, seria, se fosse
aprovado: primeiro, inútil e improfícuo; segundo, injusto e cruel; terceiro, um
malefício para o país na sua vida internacional. Não considerei, porque não
tinha que considerar, se a Maçonaria merece o mau conceito em que evidentemente
a tem o Sr. José Cabral e outros que nada sabem da matéria. Esse ponto estava
fora da linha do meu argumento. Como, porém, a maioria da gente não sabe
raciocinar, pode alguém supor que me esquivei a esse ponto. Vou por isso tratar
dele embora protestando contra mim mesmo. Quem sofre com isso é o leitor.
A
Maçonaria compõe-se de três elementos: o elemento iniciático, pelo qual é
secreta; o elemento fraternal; e o elemento a que chamarei humano — isto é, o
que resulta de ela ser composta por diversas espécies de homens, de diferentes
graus de inteligência e cultura, e o que resulta de ela existir em muitos
países, sujeita portanto a diversas circunstâncias de meio e de momento
histórico, perante as quais, de país para país e de época para época, reage,
quanto a atitude social, diferentemente.
Nos
primeiros dois elementos, onde reside essencialmente o espírito maçónico, a
Ordem é a mesma sempre e em todo o mundo. No terceiro, a Maçonaria — como aliás
qualquer instituição humana, secreta ou não — apresenta diferentes aspectos,
conforme a mentalidade de maçons individuais, e conforme circunstâncias de meio
e momento histórico, de que ela não tem culpa.
Neste
terceiro ponto de vista, toda a Maçonaria gira, porém, em torno de uma só ideia
— a tolerância; isto é, o não impor a alguém dogma nenhum, deixando-o pensar como
entender. Por isso a Maçonaria não tem uma doutrina. Tudo quanto se chama
"doutrina maçónica" são opiniões individuais de maçons, quer sobre a
Ordem em si mesma, quer sobre as suas relações com o mundo profano. São
divertidíssimas: vão desde o panteísmo naturalista de Oswald Wirth até ao
misticismo cristão de Arthur Edward Waite, ambos eles tentando converter em
doutrina o espírito da Ordem. As suas afirmações, porém, são simplesmente suas;
a Maçonaria nada tem com elas. Ora o primeiro erro dos anti-maçons consiste em
tentar definir o espírito maçónico em geral pelas afirmações de maçons
particulares, escolhidas ordinariamente com grande má fé.
O
segundo erro dos anti-maçons consiste em não querer ver que a Maçonaria, unida
espiritualmente, está materialmente dividida, como já expliquei. A sua acção
social varia de país para país, de momento histórico para momento histórico, em
função das circunstâncias do meio e da época, que afectam a Maçonaria como
afectam toda a gente. A sua acção social varia, dentro do mesmo país, de
Obediência para Obediência, onde houver mais que uma, em virtude de
divergências doutrinárias — as que provocaram a formação dessas Obediências
distintas, pois, a haver entre elas acordo em tudo, estariam unidas. Segue de
aqui que nenhum acto político ocasional de nenhuma Obediência pode ser levado à
conta da Maçonaria em geral, ou até dessa Obediência particular, pois pode
provir, como em geral provém, de circunstâncias políticas de momento, que a
Maçonaria não criou.
Resulta
de tudo isto que todas as campanhas anti-maçónicas — baseadas nesta dupla
confusão do particular com o geral e do ocasional com o permanente — estão
absolutamente erradas, e que nada até hoje se provou em desabono da Maçonaria.
Por esse critério — o de avaliar uma instituição pelos seus actos ocasionais
porventura infelizes, ou um homem por seus lapsos ou erros ocasionais — que
haveria neste mundo senão abominação? Quer o Sr. José Cabral que se avaliem os
papas por Rodrigo Bórgia, assassino e incestuoso? Quer que se considere a
Igreja de Roma perfeitamente definida em seu íntimo espírito pelas torturas dos
Inquisidores (provenientes de um uso profano do tempo) ou pelos massacres dos
albigenses e dos piemonteses? E contudo com muito mais razão se o poderia
fazer, pois essas crueldades foram feitas com ordem ou com consentimento dos
papas, obrigando assim, espiritualmente, a Igreja inteira.
Sejamos,
ao menos, justos. Se debitamos à Maçonaria em geral todos aqueles casos
particulares, ponhamos-lhe a crédito, em contrapartida, os benefícios que dela
temos recebido em iguais condições. Beijem-lhe os jesuítas as mãos, por lhes
ter sido dado acolhimento e liberdade na Prússia, no século dezoito — quando
expulsos de toda a parte, os repudiava o próprio Papa — pelo maçon Frederico
II. Agradeçamos-lhe a vitória de Waterloo, pois que Wellington e Blucher eram
ambos maçons. Sejamos-lhe gratos por ter sido ela quem criou a base onde veio a
assentar a futura vitória dos Aliados — a Entente Cordiale, obra do maçon
Eduardo VII. Nem esqueçamos, finalmente, que devemos à Maçonaria a maior obra
da literatura moderna — o Fausto , do maçon Goethe.
Acabei
de vez. Deixe o Sr. José Cabral a Maçonaria aos maçons e aos que, embora o não
sejam, viram, ainda que noutro Templo, a mesma Luz. Deixe a anti-maçonaria
àqueles anti-maçons que são os legítimos descendentes intelectuais do célebre
pregador que descobriu que Herodes e Pilatos eram Vigilantes de uma Loja de
Jerusalém.
Deixe
isso tudo, e no próximo dia 13, se quiser, vamos juntos a Fátima. E calha bem
porque será 13 de Fevereiro — o aniversário daquela lei de João Franco que
estabelecia a pena de morte para os crimes políticos.
4-2-1935
Sem comentários:
Enviar um comentário